Artigos | 06/02/2025
José Pedro Gomes, diretor de Comunicação do IEE
Se você usou a nova IA Deepseek e tentou fazer uma pergunta sobre o Partido Comunista chinês, é provável que tenha recebido a resposta: "Isso está além do meu escopo. Vamos falar sobre outra coisa". Mas essa não é apenas uma escolha técnica - é um reflexo de um problema maior.
Essa nova plataforma de Inteligência Artificial tem chamado a atenção dos noticiários pela sua capacidade de inovação. Até então, o mercado era dominado por empresas - em sua maioria americanas, como o ChatGPT - que demandavam grandes investimentos para colocar em operação suas ferramentas, além de precisar de poderosos computadores para operar.
O Deepseek surge como um concorrente de peso, entregando capacidades semelhantes ao ChatGPT por menos de 10% do custo e rodando em chips mais modestos, o que reduz drasticamente seu custo operacional. Tudo isso entregando um código aberto, possibilitando que a ferramenta seja disseminada para usos distintos e auditada pelos usuários, eliminando muitas barreiras de entrada no mundo da IA.
Para o mercado, isso é uma ótima notícia - menos para empresas como a Nvidia, que viram suas ações despencarem nos últimos dias. Mas novos serviços, com preços mais baixos e garantindo uma oferta maior para o mercado, é sempre muito importante. A livre concorrência tende a ser positiva para todos.
Essa revolução tecnológica, porém, esbarra em um paradoxo: até que ponto a China pode liderar a inovação global se suas próprias criações são sufocadas pela censura? Um movimento recente de investimentos desse país tem buscado competir com o Vale do Silício, mais importante centro de desenvolvimento tecnológico do mundo. Como citei acima, esse investimento pesado tende a ser bom, trazendo concorrência. Porém, quando se trata de China, precisamos ter um pé atrás, visto que o que há lá é um chamado "capitalismo autoritário".
As políticas recentes de lá tendem a incentivar o capitalismo como conhecemos, formando diversos bilionários de ramos distintos. Entretanto, todos apresentam um ponto em comum: não podem desafiar o regime autoritário do Partido Comunista chinês. Vimos isso na prática em 2020, no caso de Jack Ma, fundador do Alibaba, que, após desafiar o Partido, acabou "desaparecendo" misteriosamente por um período e, quando retornou, nunca mais foi o mesmo.
Agora temos o Deepseek, fruto desse mesmo paradoxo. Uma IA que "pensa", mas não questiona, que "responde", mas não debate. Se uma IA chinesa pudesse desenvolver consciência, sua primeira dúvida provavelmente seria: "Sei pensar ou sou apenas um alto-falante do Partido?".
Isso levanta uma questão maior sobre a liberdade de inovação. Qual o sentido de criar ferramentas poderosas se elas estão presas a amarras ideológicas? Nos Estados Unidos, há debates sobre viés em modelos de IA, mas a China leva isso ao extremo: censura prévia e punição a qualquer "desvio" do discurso oficial.
No fim, a China nos ensina uma lição valiosa: o livre mercado pode até gerar progresso, mas, sem liberdade de expressão, a própria inovação está comprometida. O Deepseek, como muitos empreendedores e inventores chineses, pode ir longe - mas só até onde o Partido permitir. E isso, ironicamente, é tudo o que ele pode nos dizer sobre o futuro da Inteligência Artificial sob regimes autoritários e em ambientes regulados.
Artigo publicado originalmente no Jornal do Comércio em 06/02/2025