O silêncio que não queremos ouvir

Artigos | 31/10/2024

Daniela Russowsky Raad, Diretora de Relações Institucionais e Fórum da Liberdade do IEE

A Constituição Federal de 1988 almejava a instituição de um Estado Democrático de Direito, no qual seria assegurado o exercício de direitos sociais e individuais como a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valor supremo. Para a construção dessa sociedade livre e democrática, foram instituídos os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que deveriam funcionar de forma independente e harmônica entre si, assegurando a prevalência do Estado de Direito. As funções dos Poderes são bem delineadas, e, como ator central do Poder Judiciário, está o STF, o guardião da Constituição Federal.

Segundo Montesquieu, a separação dos Poderes é um antídoto frente ao autoritarismo - sem essa divisão, a sociedade será subjugada pela tirania. Quando determinado grupo não se submete às mesmas regras dos demais, ou quando há interferência na independência e no equilíbrio dos Poderes, o sonho de uma sociedade livre está fadado ao declínio.

Mais de 30 anos depois de sua promulgação, o caminho que a sociedade desenhada na Carta Magna está tomando é preocupante. Não é de hoje que vemos interferências entre os Poderes e o rompimento de funções.

A distorção envolve desde os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, as quebras de sigilo e mandados de prisão, até as anulações de sentenças envolvendo políticos do alto escalão condenados por corrupção. Situações nas quais o STF e seus membros se tornam vítimas, acusadores, investigadores e julgadores ao mesmo tempo começam a se tornar corriqueiras. Torna-se comum, também, a aplicação de dois pesos e duas medidas: aos brasileiros fica evidente que, a depender de quem está sendo julgado, a lei tem um peso diferente. É o fracasso do Estado de Direito.

Recentemente, foi a vez de o deputado federal Marcel van Hattem (Novo) protagonizar um episódio na tribuna da Câmara, ao fazer denúncias sobre suposto abuso de autoridade. Ainda que estivesse em gozo de sua imunidade parlamentar assegurada pela Constituição, os guardiões da Carta Magna não guardaram a letra da lei e abriram um inquérito contra o deputado. Van Hattem não foi o primeiro e provavelmente não será o último.

É preocupante ver, aos poucos, menos pessoas levantando as vozes para defender os direitos básicos da sonhada democracia - na qual a liberdade prevalece. Hoje vemos a ascensão de um grupo que centraliza o poder por meio de instituições democráticas disfuncionais e faz o uso da coerção para calar aqueles que manifestam o que não lhes é conveniente; ou aqueles que não são coniventes. Aos poucos, as vozes pela liberdade vão sendo abafadas, e, quando o silêncio chegar, será ensurdecedor.

Hanna Arendt ensina que é com a erosão das instituições democráticas e a perda da confiança pública que o autoritarismo floresce, e é por meio da propaganda, do medo e da violência que ele se consolida no poder. Precisamos agir, e isso envolve não apenas a coragem para questionar e não se deixar manipular, mas também, principalmente, fazer o possível para que as vozes que ainda combatem o abuso de poder não ecoem sozinhas até sumirem. Esse silêncio ensurdecedor nós não queremos ouvir.

 

Artigo publicado originalmente no Jornal do Comércio em 31/10/2024

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