Artigos | 19/04/2023
Tiago Dinon Carpenedo, associado do IEE
Vivemos um período de contração das liberdades ao redor do mundo. Desde 2020, dois importantes fenômenos tornam isso mais nítido: as medidas de restrição de mobilidade e coerção sobre cuidados de saúde, decorrentes das políticas de saúde restritivas durante a pandemia da Covid-19; e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Embora apresentem origens e impactos distintos, ambos fenômenos estão construindo sua marca na história da humanidade.
São episódios negativos per se: enquanto aquele atingiu a saúde de milhões de pessoas globalmente, este ameaça a soberania de uma nação inteira, a Ucrânia. Um observador pode enxergar tais fenômenos simplesmente como uma crise sanitária e uma crise militar. Seria, no entanto, uma observação desatenta da realidade: são situações em que os governos, claramente, impõem perdas às liberdades individuais.
A pandemia evidenciou como os governos, repentinamente, impuseram restrições às mais diversas liberdades: desde a coerção nas decisões de saúde individual, a partir da imposição de obrigatoriedade de vacinas para ingresso em determinados países; até a intervenção na esfera econômica, com medidas de fechamento de estabelecimentos durante lockdowns e emissão massiva de moeda.
A invasão da Ucrânia pela Rússia – embora gere impactos globais – evidencia uma ação regional e unilateral que ataca a maior das liberdades individuais: a própria Vida. Seguindo a “cartilha” de um governo autoritário (1), Putin invadiu militarmente e realiza ataques contra civis, desconsiderando qualquer noção de soberania nacional dos ucranianos e seus direitos mais fundamentais.
Não bastasse, ambos fenômenos são elementos-chaves para a crítica conjuntura econômica atual, em que se verifica a maior onda de inflação global em décadas e riscos de recessão econômica.
Obviamente, a deflagração de uma pandemia e a invasão de um país relevante da Europa são situações bastante singulares, as quais podem ser contadas em frequência de décadas, e não de meses ou anos. Entretanto, situações que contrariam o ideário liberal são abundantes e capilarizadas ao redor do mundo; há casos recentes e em variadas esferas que se pode, facilmente, citar: as políticas econômicas intervencionistas que causam graves problemas fiscais e inflacionários na Argentina (2); o assassinato do ex-primeiro-ministro e político de influência no Japão, Shinzo Abe (3); a regulação europeia para um padrão único de entrada para carregamento de dispositivos eletrônicos (4).
Ainda nesta introdução, cabe colocar que, claramente, as condições em diferentes países e períodos são imensas, sob qualquer prisma. Portanto, ao afirmar que o mundo passa por uma contração das liberdades, está-se, necessariamente, realizando uma enorme simplificação, considerando especialmente aqueles países de maior destaque internacional.
Governos sendo governos
O modus operandi da maior parte dos governos ao redor do mundo visa, primordialmente, aumentar seu poder. A partir desse aumento de poder, os governos possuem mais recursos para alocar (a partir de maior tributação) nas “demandas da sociedade” e, assim, gerar uma falsa percepção de competência e de sua importância, a qual permite melhorar suas condições de perpetuação no poder. Empiricamente, é possível verificar isso nas últimas décadas, em que o Estado possui maior peso na economia – medido pela taxa de carga tributária frente ao PIB -, e grande capacidade de influência nos costumes da população.
O Estado é representado – tanto em regimes democráticos e, especialmente, nos autoritários – pela sucessão de governos, o que induz a uma compreensão equivocada pela maior parte da população: a confusão entre o papel do Estado, e os interesses do governo no poder. Assim, os governantes contam com certa “legitimidade indevida” em suas ações: em teoria, estariam desempenhando o papel de guardiões dos direitos individuais da população; na prática, os governantes preocupam-se prioritariamente com sua popularidade e capacidade de seu grupo político se manter no poder.
Ao passo que há governos realmente preocupados com o aumento das liberdades – isto é, com a redução da coerção dos indivíduos pelo Estado -, no século XXI, representam a esmagadora minoria. Por um lado, em um estado democrático e comprometido com o Estado de Direito, as liberdades dos indivíduos só podem ser tolhidas com o consentimento destes próprios indivíduos. Por outro lado, em termos populares, quando questionadas, as pessoas tendem a dizer que valorizam sua liberdade. Não à toa, o termo “liberdade” é comemorado e pleiteado por pessoas pertencentes a diferentes espectros ideológicos.
Consequentemente, surge um questionamento curioso e incômodo: se, no discurso, as pessoas dizem valorizar a liberdade, por que elas agem e votam de forma que sua liberdade, na prática, é reduzida?
A falácia na defesa da liberdade
Mais incômodo que o próprio questionamento, é minha tese para sua resposta: as pessoas, em geral, não valorizam sua liberdade de facto. Isto é, uma parcela muito pequena da população realmente comunga do ideário liberal. Vou além: devido à sua incompreensão da “liberdade”, na sua completude, poucos são os que a defendem como valor fundamental.
Cabe destrinchar essa reduzida valorização da liberdade em dois componentes: a) a superestimação da capacidade dos governos gerarem ganhos para a sociedade; e b) a subestimação do grau de perda de liberdade frente à crescente intervenção do Estado;
O primeiro componente – superestimação da capacidade do governo – é mais autoexplicativo, e tem origem na “legitimidade indevida” explicada acima. Em complemento, pode-se expor outras questões que distorcem a faculdade da população ponderar sobre o papel do governo, tanto de dimensão publicitária, quanto de dimensão psicológica.
Publicitariamente, os políticos são extremamente hábeis em apresentar “sonhos” à população; isto é, convencê-la de que, em seu cargo de governante, o político será capaz de realizar melhorias diversas na sociedade. Claramente, o populismo é uma das frentes em que isso se revela.
Psicologicamente, é confortável a qualquer pessoa delegar a responsabilidade (pelos erros e problemas) da sua vida a terceiros. Assim, ao passo que o Estado deve ser provedor de recursos, condições e direitos diversos à população, o indivíduo pode se tornar um completo “passageiro” da sua vida, enquanto o Estado assume o papel de “piloto”.
Soma-se a extrema complexidade de viver na sociedade atual. Pode-se ilustrar tal situação pelo acrônimo VUCA (5), que caracteriza o mundo atual como volátil, incerto, complexo e ambíguo. Nesse contexto, em que a vida é desafiadora em diferentes aspectos, a possibilidade de responsabilizar o Estado pelas dificuldades individuais é ainda mais sedutora.
Já o segundo componente da subestimação da perda de liberdade decorre, especialmente, do baixo nível de formação político, filosófico e econômico da população em geral acerca do ideário liberal. Processos sociais tendem a ocorrer de forma gradual e orgânica; portanto, o processo de supressão de liberdades, por exemplo, é de difícil percepção para o indivíduo com menor educação na área. Exceto em contextos de grande inflexão – como em eventos marcantes, como revoluções, golpes de estado, etc. -, os governos vão aumentando seu escopo de poder marginalmente.
Em O Caminho da Servidão, Friederich Hayek expõe como a falta de contextualização histórica gera uma tendência de que, mesmo sociedades que prosperaram devido à liberdade, serem incapazes de valorizar seu benefício:
O liberalismo veio a ser considerado uma filosofia “negativa” porque não podia oferecer a cada indivíduo mais do que uma participação no progresso comum – progresso cada vez mais considerado natural e inevitável e não mais encarado como decorrente da política de liberdade. Pode-se mesmo dizer que o próprio sucesso do liberalismo tornou-se a causa do seu declínio. Devido ao êxito já alcançado, o homem se foi mostrando cada vez menos disposto a tolerar os males ainda existentes, que a essa altura lhe pareciam insuportáveis e desnecessários. (p. 44)
Mais do que apreço à liberdade, a população possui apreço às ideias que corroboram sua visão de mundo. Recentemente, tal fenômeno é evidente na formação de “bolhas de comunicação”, em que os algoritmos das redes sociais e os próprios indivíduos – em sua filtragem pessoal -, tendem a consumir conteúdo que reforça suas convicções pré-estabelecidas.
Nesse sentido, poucos são capazes de verificar as extorsões à liberdade em medidas que, como consequência, atendam a seus interesses e vão ao encontro de sua ideologia. Em termos bastante simples, o mesmo indivíduo que enxerga determinado benefício como “privilégio” quando concedido a outro grupo de pressão, enxerga-o como “direito” quando concedido ao seu grupo. Há cerca de 170 anos, Frédéric Bastiat, na obra A Lei, relata situação completamente atual: “A quimera do momento é enriquecer todas as classes às custas umas das outras” (p. 24).
Em geral, a defesa da liberdade – no debate de políticas públicas – é utilizada como argumento para bloquear iniciativas às quais a pessoa discorda, isto é, não são alinhados com sua visão de como o mundo “deve funcionar”. Assim, se a medida X não corresponde à sua posição de defesa, utiliza-se a narrativa de que algum tipo de liberdade está sendo atacado, no caso de aprovação da medida X. Inversamente, se uma medida Y vai ao encontro de sua visão de mundo, pouco importa quais liberdades estão sendo atacadas. Ou seja, a defesa das liberdades, nestes casos, nada mais é do que um discurso de ocasião.
Portanto, poucos são os que ponderam o efeito de redução da liberdade, quando o mesmo resulta de medida que lhe é favorável. Bastiat, na obra recém citada, define o desafiador papel do verdadeiro liberal, comprometido com a honestidade intelectual de seu ideário: “É preciso optar. O cidadão não pode ao mesmo tempo ser livre e não ser” (p. 27).
O debate teórico trata a liberdade como um valor fundamental, a ser respeitado de forma onipresente. No entanto, a complexidade da vida em sociedade – e suas disputas políticas por ideias e interesses – torna a implementação prática da sociedade mais fragmentada.
Conforme defendido acima, a restrição das liberdades ocorre em processo gradual, em diversos países do mundo, nos últimos anos. Sem dúvidas, a incapacidade da maioria das pessoas em visualizar tal situação evidencia os riscos que corremos de progressiva supressão das liberdades individuais.