Artigos | 19/04/2023
Rafael Sirangelo de Abreu, associado do IEE
Democracias jovens como a brasileira volta e meia escorregam em conceitos básicos. Nossos irmãos mais velhos na América, os Estado Unidos, demoraram menos de cinco anos após a Constituição para se dar conta de que faltava alguma coisa. Ao redigirem a primeira emenda, quiseram fazer um statement: o poder deve ser limitado, de modo que agentes públicos fiquem impedidos de cercear a liberdade de religião, de expressão, de imprensa, de associação e de petição.
Como em todo statement, situações concretas ensejaram dúvidas a respeito de qual a extensão dessa limitação de poder. Com naturalidade, várias vezes a Suprema Corte foi chamada a moldar o conteúdo normativo da primeira emenda a ponto de definir, como o fez em Brandenburg vs. Ohio (1969), que discursos – mesmo os odiosos – não devem ser cerceados, a não ser que incitem ações ilegais iminentes ou representem perigo iminente de que essas ações sejam concretamente realizadas. A partir de então, a democracia americana passou a estabelecer um padrão, o chamado “clear and present danger test”. Esse foi o limite normalizado para a liberdade de expressão.
No Brasil, o aprendizado é mais lento. Embora a Constituição garanta o direito à livre manifestação do pensamento (vedado o anonimato) e o direito à inviolabilidade do sigilo da correspondência (inclusive em meios virtuais), normalizou-se a possibilidade de os agentes de poder não só cercearem esses direitos, como também criminalizarem manifestações, em ambientes privados, protegidos por sigilo, mesmo que essas manifestações – eventualmente odiosas – não repercutam em perigo real e iminente. Isso, por si só, já seria perigoso, não fosse o fato de que situações concretas como a utilização de um sticker, o “joinha”, se tornaram objeto de persecução criminal na nossa suprema corte.
Kafka ou Orwell, a escolha fica à gosto do freguês. Fato é que normalizamos o absurdo. A criminalização de opiniões, por mais odiosas que sejam (e no caso específico, talvez nem de opiniões estejamos tratando…), já é algo absolutamente incomum em democracias. Chega-se às vias do absurdo quando apimentamos os fatos com as invalidades do inquérito e adicionamos o tempero de terem sido utilizadas mensagens privadas (em sigilo claramente violado) como prova da suposta conduta criminosa. Nessa feijoada, não há dúvida de que o cozinheiro errou a mão.